1. Introito.
O desenvolvimento econômico e industrial motivou o homem a buscar cada vez mais novas tecnologias. Com isso a sociedade em muito se beneficiou, porém muitos danos também surgiram. A partir daí, surgiu à necessidade de responsabilizar os culpados pelos danos causados pelos novos produtos, bem como o questionamento: até onde se admite o risco do desenvolvimento?
A responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços veio ganhando força e se desenvolvendo ao longo dos anos. O Código de Defesa do Consumidor adotou a teoria da responsabilidade objetiva e previu as excludentes de responsabilidade do fornecedor.
Para a responsabilidade objetiva não importa o causador do dano. O elemento relevante nesta concepção é o risco. Assim, na ocorrência de um dano e uma atividade perigosa, basta que se encontre o nexo de causalidade entre esses dois elementos para que se tenha a responsabilidade civil.
Contudo, a discussão sobre a responsabilidade civil por danos causados pelo fornecedor a partir do desenvolvimento da ciência e da tecnologia é matéria que vem ganhando força na jurisprudência.
Sendo assim, a controvérsia instala-se quando o fornecedor aplica todos os testes, realiza todas as pesquisas e, pela técnica disponível e pelo desenvolvimento da ciência na época da introdução do produto no mercado, não encontra qualquer ameaça no produto e, posteriormente, com o passar do tempo e um maior desenvolvimento da ciência e da tecnologia descobre-se que aquele produto pode ser nocivo à saúde.
O que fazer nesse caso? Poderia o fornecedor tentar resguardar-se alegando o risco do desenvolvimento?
2. Entendendo o risco do desenvolvimento
Na sociedade de consumo em que vivemos, produtos novos são lançados no mercado todos os dias, sempre com o discurso que são de última geração, com o programa mais atualizado, mais seguro, mais inovador.
Isto, porque, os bens e serviços são adquiridos não mais para satisfação de necessidades, mas como instrumentos que nos permitem estabelecer uma diferenciação, autossegmentando o próprio tecido social.
Assim, o desejo de distinguir-se e, simultaneamente, ver-se identificado com determinado grupo social impulsiona o consumo, que se transforma em demanda.
É natural que o desenvolvimento tecnológico avance cada vez mais e, com isso, novos produtos surjam com maior índice de segurança e avanço tecnológico.
No entanto, esses novos produtos devem coexistir com aqueles já lançados e que se dizem ultrapassados. Ocorre que esses produtos antigos e que não contam com as novas tecnologias de segurança, não podem ser considerados como defeituosos.
A caracterização de um produto como defeituoso deve levar em conta o momento em que ele foi introduzido no mercado. Não cabe então fazer uma análise comparativa dos dois produtos.
Situação diferente ocorre quando o produto já foi colocado no mercado, mas por um avanço tecnológico, se descobre que aquele produto possui um vício. Para essa situação, discute-se a aplicação da teoria do risco do desenvolvimento.
Neste sentido ensina Gomes (2001, p. 219):
“O risco do desenvolvimento consiste no fato de que os riscos advindos da introdução de um produto no mercado não serem conhecidos ou identificados prontamente, só sendo conhecidos depois, por um desenvolvimento tecnológico não existente na época em que o mesmo foi inserido no mercado.”
Em suma: o risco do desenvolvimento é inerente à própria evolução tecnológica e científica da humanidade.
3. Exemplos práticos.
Caso que se tornou muito conhecido foi o do medicamento conhecido como Talidomida, usado por mulheres entre 1957 e 1961 para alívio do enjoo durante a gravidez.
Nesse produto, originado da Alemanha e comercializado em muitos países, inclusive no Brasil, foi identificado, anos depois, que quando consumido nos três primeiros meses de gestação poderia causar efeitos de deformações e problemas de crescimento de membros como braços e pernas nos fetos (POLIDO, 2008).
Outro exemplo, correu em 2004, com o medicamento Vioxx (Refecoxib) em que sua comercialização foi suspensa após o anúncio pela empresa americana de que o mesmo poderia aumentar o risco de problemas vasculares. Esse anti-inflamatório entrou no mercado em 1999 e foi comercializado em aproximadamente 80 países (ARAÚJO, 2007, p.41).
Araújo (2007, p. 41) aponta ainda o caso do medicamento Merthiolate, “antisséptico de uso geral para curativos”, afugentador de crianças machucadas devido à ardência provocada no local do ferimento.
Em 2001, o Merthiolate foi retirado de circulação por força de determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) segundo a qual a quantidade de mercúrio presente no antisséptico causaria danos ao organismo humano.
No mesmo sentido podemos encontrar exemplos também no campo da prestação de serviços, no qual um fisioterapeuta utilizava-se de técnica para tratar determinada lesão, levando em consideração que já havia sido testada pelos melhores especialistas. No entanto, com o passar dos anos, os pacientes apresentam lesões inesperadas.
Todos estes exemplos nos levam à seguinte pergunta: caso haja um dano futuro de qualquer um desses produtos ou serviços, quem será o responsável?
A resposta a essa pergunta ainda gera controvérsias não só no Brasil como em todo o mundo.
4. D exclusão da responsabilidade
Não há um consenso hoje a respeito da utilização da teoria do risco do desenvolvimento no Brasil como excludente ou não da responsabilidade do fornecedor, para quaisquer casos.
A análise é sempre feita casuisticamente, eis que a questão se torna controvertida ao tentar conciliar a necessidade de desenvolvimento com o bem-estar do consumidor.
É importante observar, por outro lado, que qualquer forma de limitação pode trazer graves prejuízos ao desenvolvimento natural da tecnologia.
A partir dessa visão temos que a ciência e a tecnologia só trazem benefícios para sociedade. Por outro lado, os diversos interesses sociais e econômicos que impulsionam o uso de novas tecnologias, implicam em riscos para o consumidor.
4.1. Corrente favorável.
Experimentos sempre foram utilizados durante toda a história da humanidade para garantir a evolução, inclusive são os riscos os maiores responsáveis pelo desenvolvimento da pesquisa científica.
São eles que alavancam os cientistas a buscarem novas soluções para novos e velhos problemas. Se não fosse a possibilidade do dano, não haveria estudos para eliminação dos mesmos.
O que se percebe, para esta corrente, é que o fornecedor em momento algum negligenciou ou teve a intenção de colocar no mercado um produto defeituoso, uma vez que o produto foi testado e, naquele momento, foi aprovado em todos os testes, sendo, portanto, apto ao consumo.
Para quem entende o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade, na prática, a sua aplicação se dá a partir da verificação do conhecimento da comunidade cientifica da época.
Sendo assim, é dever do fornecedor utilizar-se de todo o conhecimento existente para fornecer um produto de qualidade ao mercado, com o conhecimento tido à época.
Isto é, o artigo 10 do Código de Defesa do Consumidor, ao vedar ao fornecedor introduzir no mercado produtos dos quais saiba, ou devesse saber, apresentar alto grau de periculosidade ou nocividade, exclui a responsabilidade, eis que não há um dever de conhecimento sobre o seu defeito existente, à época na qual o mesmo foi colocado no mercado.
Até mesmo porque o artigo fala em grau de periculosidade ou nocividade que “devesse saber” e, se não há como saber do defeito à época dos fatos, não há que se falar em responsabilidade.[1]
E mais, o defeito do produto colocado em circulação, embora existente desde a sua concepção, não era perceptível à época pelo fornecedor, por ausência de conhecimento científico na própria comunidade acadêmica, sendo hipótese de fortuito interno.[2]
4.2. Corrente desfavorável
Já quem defende a responsabilização do fornecedor, entende que caso assim não o fosse, teríamos o risco de responsabilizar a vítima por dano ocorrido pela culpa do fornecedor.
Esta última corrente encontra apoio na exigência moderna de que nenhum consumidor, vítima de acidente de consumo, seja prejudicado a ponto de ficar sem indenização.
A tendência atual é repartir todos os prejuízos com todos os beneficiários da sociedade de consumo, através da responsabilização do fornecedor, a quem é possível, através do preço do produto, proceder a internalização dos custos sociais dos danos.
Miragem (2008, p. 292) ensina:
“Não se pode desconsiderar que o legislador do CDC, ao estabelecer regime da responsabilidade objetiva e restringir as hipóteses de exclusão da responsabilidade do fornecedor, teve por finalidade a máxima extensão para o consumidor da proteção contra os riscos do mercado de consumo. Neste sentido, imputou ao fornecedor o ônus de suportar tais riscos, sobretudo por sua capacidade de internalizar os custos que estes representam, e distribuí-los por intermédio do sistema de fixação de preços.”
Em suma: é responsabilizando o fornecedor pelo risco do desenvolvimento que é possível fazer com que o mesmo assuma integralmente todos os riscos provenientes de sua atividade, como se isso fora um começo da socialização do risco e do prejuízo.
5. Da Conclusão
Então, até onde se admite o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade do fornecedor?
Não há um consenso na jurisprudência a respeito do tema aqui tratado. Sendo os casos analisados individualmente.
Os que defendem o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade entendem que não se pode admitir que em razão da responsabilidade objetiva do fornecedor, aliada a teoria do risco, este deva arcar com indenizações descabidas de qualquer prova do efetivo dano.
Isto porque ensejaria um enriquecimento injusto do consumidor ou até mesmo da coletividade.
Já, a corrente contrária, entende que o Código do Consumidor não o incluiu entre as causa de exclusão de responsabilidade do fornecedor previstas no art. 12, § 3º, a razão pela qual considera o risco de desenvolvimento uma espécie de gênero de defeito de concepção, e, como tal, incluído no risco do fornecedor.
Porém, a responsabilidade do fornecedor deve ser avaliada caso a caso, considerando a evolução tecnológica, o uso de procedimentos adequados e estudos, bem como revalidações, antes de se colocar o produto em circulação, bem como os danos causados ao consumidor.
A exclusão da responsabilidade do fornecedor se dará, não por questões políticas, ou interpretações estritas da lei, como entendem alguns, mas, em razão da demonstração de que o desconhecimento do fornecedor era inevitável, bem como que o consumidor detinha conhecimento dos riscos advindo do uso do produto.
A responsabilização cega do fornecedor pelo simples argumento da teoria do risco do empreendimento, não deve ser admitido. Por outro lado, não se pode permitir a introdução e circulação desenfreada de produtos no mercado de consumo, sem avaliar os riscos ao consumidor.
Em suma: a resposta a nossa pergunta inicial é uma variável: depende!
[1] STJ – REsp 1774372/RS. Ministra NANCY ANDRIGHI. 3ª Turma. Julgado em 05.05.2020. [2] 6. O ordenamento jurídico não exige que os medicamentos sejam fabricados com garantia de segurança absoluta, até porque se trata de uma atividade de risco permitido, mas exige que garantam a segurança legitimamente esperável, tolerando os riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, desde que o consumidor receba as informações necessárias e adequadas a seu respeito (art. 8º do CDC). (...) 8. O risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno (REsp 1774372/RS).
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